sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Q.

- Quem poderia imaginar que acabaria assim? - Disse uma voz no aposento escuro. - Quem havia de esperar que nosso fim seria este? Lançados de lado neste canto escuro e esquecido de nosso mundo! Quão indigno! Quão deprimente! Nossas histórias certa vez foram a luz do mundo. Nelas matavamos dragões e demônios, perversos e vis. Encantávamos, lutávamos, ludibriávamos! Compunhamos canções e cantigas capazes de fazer brotar a luz no coração do mais sinistro rei, nossas habilidades como estrategistas e guerreiros eram motivo de orgulho para o nome de nossa família!
- Sim, irmão. Tudo isto é verdade, mas já era sabido por nós que o tempo colheria sua parte. - Uma outra voz no escuro, mais calma, mais serena, mais sombria. - Nós compramos esse destino para nós. Vivemos muito, em todos os sentidos que conheciamos. Tivemos mulheres, reinos, riquezas, força, astúcia, sabedoria, poderes, influencia... Nós vivemos o mundo e não apenas nele. Nós nos espalhamos tanto que tomamos todas as histórias para nós. Nem Anansi negaria isso, por mais que todas as histórias ainda pertençam a ele. Quando decidimos fazer isso, também decidimos que nosso destino seria aquele de nossas histórias. - A segunda voz, embora fria e sem o menor traço de emoção, transmitia um sentimento de triste aceitação, de desistencia.
Kairin não poderia suportar ver seu irmão assim.
- Ora, vamos! Ainda podemos fazer algo quanto a isso! Ainda não chegou a hora de nos tornarmos pó e cinzas! Nós não vivemos todas as histórias ainda! Não podemos desistir. Não podemos abrir mão de nossa imortalidade. Ainda que ninguém se lembre de nossas histórias, ainda lembram nossos nomes! E por mais que o tempo passe e os humanos mudem, por mais que o fino fio que mantém tudo unido se estique, por mais que nós estejamos habitando este local escuro onde tudo espera para ser esquecido, e por mais que o fogo e o fim venham e limpem todos os vestígios de tudo o que já existiu e até mesmo o próprio Anansi abandone suas histórias, nada será capaz de apagar o fogo com o qual arde o nome Qwanzy. E é isso que nós somos. E é por isso que por mais que esqueçam nossos nomes e nossos feitos, sempre saberão que houveram Qwanzys, e que eram dois, e que por mais que não sejam capazes de se recordar de nada em específico quanto a eles, lembrarão que um dia eles foram tudo que existia. - A esperança tomava forma física vinda de Kairin, uma de suas habilidades já esquecidas, sem dúvidas, e começava a iluminar o lugar. - Mas o dia de sermos esquecidos ainda está longe entretanto, Koethe. Venha, temos uma história a vivenciar. - E com isso, fez um sinal em direção ao mundo que passava a surgir diante deles.
- Parece que no fim você realmente é a luz que nos impulsiona, Kairin... - Disse Koethe com nenhuma inflexão específica.
- E você continua a ser a sombra que nos mantem, Koethe... - Disse Kairin rindo com um gesto para o chão, onde suas sombras se conectavam, uma a favor da luz, a outra contra.
- Por sinal, belo discurso. Fico feliz em ver que você ainda tem isso em si. Não sei se poderiamos continuar usando nossos nomes se não.
- Poderiamos, e não estariamos mentindo, mas já não nos chamariamos Qwanzys, não?
- Não. Talvez ai houvessem outros... Mas no momento só há nós e a nossa história.
- E todas as histórias que a compõem.

E ambos seguiram juntos em direção a outra história, deixando a sala escura, onde todos nós guardamos aquilo que esquecemos, para trás onde se via apenas um leve brilho laranja avermelhado, fraco de mais para chamar atenção mas forte de mais para não ser percebido por qualquer um que ali passasse, e as letras que compunham aquilo que eles eram:

Qwanzy.