segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Tentando voltar a escrever...

Seus olhos vertiam quentes lágrimas de sangue. Em seus braços, aquela que um dia havia sido seu sol, aquela que mais significava para ele jazia imóvel. Sua existência compreendia apenas dor e desespero, incapaz de assimilar o trágico fim de seu sonho. Em suas mãos o corpo dela se tornava em sal, duro e sem vida, despedaçando-se pouco a pouco. Um sinal impossível de ser ignorado de que aquele era o fim de tudo pelo que eles lutaram. Pouco a pouco, em parte por seus olhos cheios de lágrimas e sangue, em parte pela forma dela que se deformava ao se tornar sal, ele deixou de vê-la. Buscou na memória a imagem dela, tentando resgatar a esperança de que um dia a veria sorrir ao seu lado novamente, mas foi em vão. Aquele era o fim e não havia espaço para débeis esperanças, ele se viu incapaz de recordar do rosto dela. Sua carne foi partida por facas de desespero, a dor sentida, ainda que não real, foi lacerante. A seu redor a cidade rangia, as memórias que impregnavam as ruas, os momentos felizes entalhados nos prédios, calçadas e becos começavam a se desvanecer, tornando-se em pó junto de seus arredores, incapazes de manter a solidez diante da partida. Nada permanecia com ele, apenas a lembrança de que um dia houve algo e a certeza definitiva de que aquilo havia o deixado em pedaços. E a dureza fria, cruel e real das últimas palavras. E lá ele ficou, sentado diante dos restos de seu amor, com os olhos cegos pelo sangue das feridas deixadas e as lágrimas de sua dor, cercado por restos toscos e dolorosos do que um dia foram memórias felizes mas agora só acentuavam a ausência. Em seu luto pelo amor, ele ficou, até que dias se tornaram anos e anos se tornaram eras e o tempo deixou de significar e encontrou seu fim. Tudo que realmente restava era ele, cego, insone, perturbado pela única certeza da qual ele lembrava, de que houve amor e ele se foi, sempre com as últimas palavras em sua mente. A eternidade se foi na constância vazia, até que novamente o tempo tornou a passar, a dor pareceu não mais abranger o mundo. O sangue seco sobre seus olhos caiu e ele não foi capaz de reconhecer mais o que via. Não havia dor, pois aquilo não era mais parte de seu amor. Ao seu redor a cidade andava, pessoas iam e vinham ignorantes de seu sofrimento. O sol nascia, os pássaros voavam. O mundo girava para ele novamente, ele não entendia mais tudo que havia acontecido. Ele havia amado e sofrido, ele lembrava apenas disso, como um sonho distante sem compromisso com a realidade, e das últimas palavras. Ele se sentia triste ao perceber que aquilo havia passado, e ele ainda sentia a aspereza das últimas palavras, mas dessa vez ele entendeu o que elas significavam para ele. Elas o ensinaram e o moldaram. Elas o fizeram entender. Elas o fizeram crescer. E elas o fariam chorar por dentro um pouco, sempre que se lembrasse do que elas significavam. "Nós não devemos mais ficar juntos." Mas ele então era livre...

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Q.

- Quem poderia imaginar que acabaria assim? - Disse uma voz no aposento escuro. - Quem havia de esperar que nosso fim seria este? Lançados de lado neste canto escuro e esquecido de nosso mundo! Quão indigno! Quão deprimente! Nossas histórias certa vez foram a luz do mundo. Nelas matavamos dragões e demônios, perversos e vis. Encantávamos, lutávamos, ludibriávamos! Compunhamos canções e cantigas capazes de fazer brotar a luz no coração do mais sinistro rei, nossas habilidades como estrategistas e guerreiros eram motivo de orgulho para o nome de nossa família!
- Sim, irmão. Tudo isto é verdade, mas já era sabido por nós que o tempo colheria sua parte. - Uma outra voz no escuro, mais calma, mais serena, mais sombria. - Nós compramos esse destino para nós. Vivemos muito, em todos os sentidos que conheciamos. Tivemos mulheres, reinos, riquezas, força, astúcia, sabedoria, poderes, influencia... Nós vivemos o mundo e não apenas nele. Nós nos espalhamos tanto que tomamos todas as histórias para nós. Nem Anansi negaria isso, por mais que todas as histórias ainda pertençam a ele. Quando decidimos fazer isso, também decidimos que nosso destino seria aquele de nossas histórias. - A segunda voz, embora fria e sem o menor traço de emoção, transmitia um sentimento de triste aceitação, de desistencia.
Kairin não poderia suportar ver seu irmão assim.
- Ora, vamos! Ainda podemos fazer algo quanto a isso! Ainda não chegou a hora de nos tornarmos pó e cinzas! Nós não vivemos todas as histórias ainda! Não podemos desistir. Não podemos abrir mão de nossa imortalidade. Ainda que ninguém se lembre de nossas histórias, ainda lembram nossos nomes! E por mais que o tempo passe e os humanos mudem, por mais que o fino fio que mantém tudo unido se estique, por mais que nós estejamos habitando este local escuro onde tudo espera para ser esquecido, e por mais que o fogo e o fim venham e limpem todos os vestígios de tudo o que já existiu e até mesmo o próprio Anansi abandone suas histórias, nada será capaz de apagar o fogo com o qual arde o nome Qwanzy. E é isso que nós somos. E é por isso que por mais que esqueçam nossos nomes e nossos feitos, sempre saberão que houveram Qwanzys, e que eram dois, e que por mais que não sejam capazes de se recordar de nada em específico quanto a eles, lembrarão que um dia eles foram tudo que existia. - A esperança tomava forma física vinda de Kairin, uma de suas habilidades já esquecidas, sem dúvidas, e começava a iluminar o lugar. - Mas o dia de sermos esquecidos ainda está longe entretanto, Koethe. Venha, temos uma história a vivenciar. - E com isso, fez um sinal em direção ao mundo que passava a surgir diante deles.
- Parece que no fim você realmente é a luz que nos impulsiona, Kairin... - Disse Koethe com nenhuma inflexão específica.
- E você continua a ser a sombra que nos mantem, Koethe... - Disse Kairin rindo com um gesto para o chão, onde suas sombras se conectavam, uma a favor da luz, a outra contra.
- Por sinal, belo discurso. Fico feliz em ver que você ainda tem isso em si. Não sei se poderiamos continuar usando nossos nomes se não.
- Poderiamos, e não estariamos mentindo, mas já não nos chamariamos Qwanzys, não?
- Não. Talvez ai houvessem outros... Mas no momento só há nós e a nossa história.
- E todas as histórias que a compõem.

E ambos seguiram juntos em direção a outra história, deixando a sala escura, onde todos nós guardamos aquilo que esquecemos, para trás onde se via apenas um leve brilho laranja avermelhado, fraco de mais para chamar atenção mas forte de mais para não ser percebido por qualquer um que ali passasse, e as letras que compunham aquilo que eles eram:

Qwanzy.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

This Is Not An Exit.

"Este Mundo é um Mundo falso, não devemos esperar que nada proveniente dele seja Verdadeiro.

Entretanto, mesmo em um Mundo falso, um pode encontrar certo aspecto de Verdade, como eu encontrei.

Essa Verdade encontrada não é iluminadora, nem tampouco esclarecedora. Ela é provedora de dúvida e confusa.

Uma vez tendo encontrado-a, o indivíduo percebe a natureza desta verdade e se apega a ela, fixando assim a dúvida e a confusão que ela traz a seu espírito.

A Alma, agora armada de uma Verdade, passa a ser algo estranho ao Mundo falso, e o Mundo falso passa a ser gradualmente mais confuso para ela.

Por fim, a existência da Alma confusa e do Mundo falso passam a ser conflitantes e um passa a não mais suportar o outro...

Assim se dá um fim. Do Mundo, da Alma, da Verdade.

Talvez haja algo de Real nisso."


Who dare to be a truth-caller in our midst?!

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Um Final.

"...E, tendo conhecido a verdade, usado-a como arma e sofrido por ela, ele superou todas as ilusões e difículdades que havia encontrado nesta cidade e finalmente a deixou para trás." E então ele pausou, esperando sua história se aninhar silenciosamente no fundo dos corações e mentes de sua platéia. "Vocês devem estar se perguntando qual foi o motivo desta história. Bem... a muito tempo temos vivido aqui, nesta terra de selvagens, na esperança de ensiná-los, instruí-los... Entretanto, sempre em vão." Sua platéia estava curiosa, era raro Inridith Clod falar qualquer coisa em suas reuniões, visto que sua palavra e sua sabedoria encerrava qualquer debate de maneira incontestável. Mas esta noite ele não só estava falando para todos como havia contado uma história. "E quão ingratos eles são... Desprezando não só nosso saber, como também nossa boa vontade em ensiná-los." O desprezo em sua voz era palpável. Pouco a pouco, sua platéia começava a reconhecer esse desprezo, um sentimento a muito deixado de lado. "Nós desenvolvemos mais e mais formas de passar nosso conhecimento para eles. Nós tentamos simplificar tudo para que seus intelectos e suas vontades inferiores possam ter a mínima chance de compreender algo e para isso, o que nós fazemos? Nós nos esforçamos para nos colocar no lugar deles! Háh! O quão absurdo e degradante não é isso?!" Pouco a pouco, a platéia compreendeu do que seu sênior, não... do que seu Pai estava falando. Como se despertassem de um longo e exaustivo sonho, eles lentamente se deram conta da situação indignante em que se encontravam e, um a um, passaram a sentir vergonha, raiva e desprezo pelos ignorantes e deploráveis selvagens que tão levianamente recusaram suas tentativas de ajuda e feriram seu orgulho.
"Meus filhos, nem tudo está perdido. Esta noite um clamor advindo da mais profunda escuridão do seio da hedionda mãe dos selvagens me alcançou. A Ordem Real foi dada!" A medida que falava, suas costas, curvas por suas horas de leitura, se alinhavam, firmes e poderosas. Seus olhos, cansados pelo passar dos séculos, tornaram a resplandescer em luz. E, pouco a pouco, seu corpo velho, símbolo máximo da sabedoria que jazia com Inridith Clod, tornava a sua antiga forma, de maneira a refletir seu interior luminoso. "Por muito tempo semeamos e cuidamos das sementes, mas esta terra se provou infértil. Nenhum bom fruto nascerá desta cidade!" Tamanha era a luz de Inridith Clod e seus filhos que a mesma não mais era contida por casulos de carne, mas havia consumido completamente a carne de seus ossos e agora seus corpos ostentavam apenas luz. "Meus irmãos também escutaram a Ordem do Rei esta noite, mas seus corações movem-se apenas por vingança. Nós somos melhores que isso! Nossos anos de trabalho chegam ao fim, ajamos com honra mesmo diante de seres tão insignificantes!" Conforme seu discurso chegava ao seu ápice, pela primeira vez em muitos séculos, todos ali estenderam suas asas.
"É chegada a hora da Ceifa! Passemos julgamento justo em todos os selvagens impuros que habitam na cidade abaixo! Como o Homem da história, cortaremos através de ilusões e mentiras, deixaremos a cidade nua diante de nosso olhar! E após fazermos certo de que não haja um só trigo entre eles..." E com uma única voz, um único movimento, como uma única força torrencial, toda luz deixou seu castelo de nuvens em direção a antiga cidade com um grande estrondo. "Todo Joio irá queimar."
E naquela noite luz choveu por toda a cidade. E todos os selvagens se maravilharam e deram graças por aquela beleza e imponência transmitidas pelas luzes. Como eram tolos aqueles selvagens.

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Uma casa

Aquele que aqui habitava, se perdeu. A casa fora abandonada e deixada ao relento, ao acaso de qualquer desavisado que chegasse até ela. Sua vontade foi esquecida, sua história foi enterrada. Suas dores e suas mágoas foram o que o moveram, mas hoje já não significam nada. Essa morada deixada de lado hoje encontra um novo dono, diferente do anterior.
Em seu primeiro dia ele já trouxera mudanças, aquele estranho morador. Limpou toda a casa e começou sua reforma, preparou jardins e deu nova face a fachada. A casa, desacostumada a tanta atenção não sabia o que fazer. Sempre acostumada a ser deixada de lado, ela se sentiu confusa e tentou retribuir, mas seus gestos foram confundidos com o vento, ou roedores, ou fantasmas. A casa se entristeceu mas percebeu que se continuasse assim afastaria seu novo e estranho morador, então ela aceitou os presentes dele e se calou conforme ele a modificava parte a parte.
"Lar, doce lar." disse o já não tão estranho morador no fim.

domingo, 24 de outubro de 2010

Quando não estamos tão bem....

Veja! Olhe bem! Lá, onde uma vez foi a morada das coisas mais lindas, serenos córregos, floridos campos, de gozo e de felicidade, hoje apenas habita dor e destruição! Rios de fogo consomem a terra morta, ao mesmo tempo em que raios partem os céus e a única coisa a ser escutada no ar são os gritos de agonia e tristeza! Quão distante do original ele se tornou, não lembrando nem mesmo mais uma face distorcida de um anjo, mas sim qual a face monstruosa de um monstro infernal! Ainda assim intenta voltar lá? Mesmo não sendo mais o lugar no qual plantastes tanta alegria? Tens a coragem, a audácia, de retornar ao local ao qual tu tudo deste e do qual tudo tirastes? Insolente! Vira teu rosto! Mostre desprezo diante desta hedionda agonia! Sinta repulsa! Odeie! Escarne! Zombe e Humilhe! Não torne a fecundar essa terra morta e sedenta com palavras de carinho, antes pisa nela e queime-a, mas não a traga de volta a vida se não intenciona permanecer para nutri-la. És tu a única criatura, debaixo do firmamento, capaz de adentrar esta terra desolada e vil, absolta dos perigos e das mazelas aqui jacentes, e ainda assim alegrar-se tratando-a. Por quê? Imploro que respondas, por que tu, após tanta dor e tanto prazer, tanta tristeza e júbilo, tanta paz e tanta confusão, por que ainda encontra-se capaz de atravessar a passos calmos os portões de minha mente e caminhar despreocupada nos jardins de meu coração? Dê-me um fim! Não salve o que sobrou, pois de nada presta. Ó belíssima algoz. Ó cruelíssima musa. És motivo de toda alegria e dor que conheci. Agora termine isso! Suplico-lhe que dê-me um fim! Ateie fogo ao pouco que resta, assiste as chamas dançantes enquanto elas fazem o acalento final desta terra. Não prolongues mais esse sofrimento, dê seu derradeiro veredicto! Essa terra, que é minha, mas sob a qual não tenho poder, pode já não mais suportar.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Jornada

Por milhas e milhas eu andei sobre a vastidão cinzenta, esse infindável deserto de cinzas. Já não lembro quando comecei essa jornada, nem por que, mas das poucas pessoas que encontrei algumas pareciam não querer seguir em frente, e quando começavam a parar logo começavam a afundar nas cinzas e eram engolidas pelo chão.
Foi uma jornada árdua e assustadora, a princípio eu não lembro o que me motivava, depois foi o medo de ser engolido pelo deserto e, por fim, foi a simples vontade de saber o que me esperava no final, todo aquele sofrimento, todos aqueles anos, os pés nus sobre as cinzas frias, a pele nua sob o vento castigante, tudo aquilo deveria ter um significado.
Foi então que eu comecei a sentir os tremores. A principio eram pequenos baques, quase ritmados, mas conforme eu continuava a andar eles foram se tornando mais e mais fortes até chegarem ao ponto de me derrubarem, mas aos poucos fui me acostumando com o crescimento gradativo dos tremores e consegui continuar em frente.
Após isso vieram os sons. Não percebi quando eles chegaram, pareciam estar sempre lá, junto do vento que cada vez passava a me açoitar mais, mas agora eles começavam a se tornar audíveis e mais que isso. Conforme eu seguia em frente eles se tornavam mais altos, de modo que eu pude perceber que eles eram cadenciados com os tremores. E eram pavorosos. Os ruídos indistintos tornaram-se gritos de pavor. As cinzas gélidas e o vento cortante atacavam meu corpo, a dúvida e o temor atacavam minha mente, e esses gritos tenebrosos atacavam minha alma.
Ainda assim continuei. Até encontrar finalmente meu destino.
Era enorme. Ele... Não. Aquilo era enorme. No instante que pus meus olhos naquela forma colossal senti todos os músculos do meu corpo falharem, não pude mais me mover. Pelo que me pareceram anos eu fiquei lá parado, observando a coisa se mover e agir, e pouco a pouco compreendi minha jornada. Eu não havia sido o primeiro a chegar lá, certamente não seria o último, mas pude observar o destino de cada uma das pessoas que ele... aquilo escolheu antes de mim. Ainda assim, quando sua mão, gigantesca, monstruosa e calejada pelo esforço de uma eternidade, se estendeu em minha direção para enfim me alcançar eu não fui capaz de sequer soltar uma palavra.
Aquilo me ergueu diante de si e me olhou no fundo dos olhos, como um artífice avaliando seu material base. Em seus olhos eu vi fogo, eu vi guerra. Vi fome, vi morte, vi bestas selvagens, chacinas, explosões. Vi implosão de estrelas e fissão de átomos. Em seus olhos vi o próprio tempo.
Conforme ele me descia, após me avaliar, retomei o controle sobre mim e finalmente gritei; com todas as minhas forças eu gritei, e minha voz tornou-se o vento, que, junta de todas as que a antecederam, partiu então para preparar a todos que caminhavam até ali, e meu corpo desfez-se em cinzas, trazendo minha existência a um fim, após ser tocado pela mão de Destruição.